quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O lugar onde eu nasci

A lembrança mais antiga que eu tenho é uma em que vejo as coisas do alto, onde tudo é daquela textura translúcida, da mesma matéria que compõe os sonhos. Na verdade, ainda hoje não tenho certeza se realmente é uma lembrança ou se é um daqueles sonhos que temos e que, ao acordarmos, teimam em permanecer na nossa alma como memória de algo que vivemos em um passado distante, que não conseguimos localizar no tempo e no espaço.

Nesta lembrança, é como se eu estivesse no colo de minha mãe em um final de tarde primaveril. Estamos passeando em uma rua asfaltada, mas cercada de verde. Meu irmão anda ao lado e puxa por um pedaço de barbante um carrinho de madeira. Em uma casa próxima, há uma garota na janela de um segundo andar, que joga pétalas de flores sobre nós quando passamos por perto.

Comentei algo sobre isso com minha mãe já tem um tempo e ela me explicou que a rua era onde ficava nossa casa, quando morávamos em Manaus (AM), o lugar onde nasci, e que a garota que jogava flores era a nossa vizinha, namoradinha do meu irmão, na época com quatro anos de idade. Será que ela falou isso para instigar ainda mais a minha imaginação??? Independentemente dessa resposta, a lembrança está instalada em minha memória como um fato real.

Com efeito, nasci em Manaus. Um daqueles episódios de nossa vida sob o qual não temos gerência nenhuma, mas que são decisivos para nossa existência, como o lugar em que nascemos, o nome que levamos, a denominação religiosa em que somos batizados... Nasci apenas, e nem sequer tive chance de ter consciência de quem eu era e onde estava, fui arrebatada de lá para outro lugar: Belém (PA) e é como se aqui tivesse nascido, pois foi aqui que me identifiquei como um ser no mundo, que me tornei uma estatística e ocupei um lugar no espaço.

De Manaus, apenas criei lembranças e sonhos. Lembro de uma casa grande, branca, tinha três pátios, cada um com o chão de uma cor diferente: vermelho, azul, branco... A cozinha era de um tom laranja-tijolo, os utensílios eram vermelhos, da cor do fusca em que meu pai nos levava para passear. Tínhamos um quintal em que minha mãe armava uma piscina de plástico aos domingos. Meus avós, que moravam em um conjunto residencial chamado Jornalista, vinham nos visitar com frequência. Coincidência ou não, hoje eu sou jornalista...

Não tenho registros mentais de ter estado quando criança na Ponta Negra, no Teatro Amazonas ou ter testemunhado o encontro das águas do Rio Negro com o Rio Solimões, mas é como se esses lugares fizessem parte de mim de tanto ter ouvido falar neles, pois pertencem ao lugar onde eu nasci. O caso é que até pouco tempo havia uma Manaus na minha memória do jeito que eu a havia criado e que tantas vezes eu visitei em sonhos infantis e outra, a que realmente existe e que constitui a capital de um estado da federação brasileira: o Amazonas, sobre o qual eu apenas conhecia de livros e das conversas de meus pais.

Conheci, de fato, o lugar onde eu nasci aos 25 anos. A cidade deve ter mudado desde o tempo em que a habitei, antes mesmo de completar o meu primeiro ano de vida. Percebi que o lugar é bem mais do que a casa com os três pátios, o quintal e o conjunto residencial dos meus avós. Ela também não tem nada dos estereótipos criados pelos livros preconceituosos que a figuram como um lugar de florestas, animais selvagens e índios por toda a parte. A Manaus real entrou em choque com a Manaus da minha memória e a Manaus que gostariam que ela fosse.

Gostei de tê-la conhecido, mas não tenho certeza se poderei substituí-la dentro de mim. Prefiro guardar a imagem fantasiosa que eu mesma criei, do que carregar na alma a concretude de uma metrópole que não tem nada de diferente das outras. O lugar onde eu nasci era especial, tão especial que nem mesmo sabia como ele era. Desvendá-lo, é como desencantar uma parte de mim que só existia no devaneio e na imaginação e, por isso, era mais bela e mais pura.

Benditas as coisas que não sei
Os lugares que não fui
Os gostos que não provei
Meus verdes ainda não maduros
Os espaços que ainda procuro
Os amores que nunca encontrei
Benditas coisas que não sejam benditas

Esse post tem trilha sonora,
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3 comentários:

Andréa Mota disse...

Alguém disse uma vez que as memórias que temos não se projetam como filme, não contam histórias completas, mas que seus abraços se florescem, se recriam e perfumam por meio de nossa imaginação..

senti a particularidade do teu campo de flores..

=)

Interferência disse...

Bonito. Lembrou qdo escrevi sobre a minha cidade natal (mas sem poesia, rs). Às vezes, algumas coisas ficam melhores na memória, não? Preços do tempo...

Jen__@ disse...

Engraçado que eu lembro de Manáus exatamente assim, como se fosse em um sonho, apesar de ser uma ano mais velha que tu quando nos mudamos de lá, também não consigo ter uma idéia clara de como eram as coisas, acho que idealizo bastante as poucas lembranças de lá que tenho na memória. Muito bonitinho o post, fiquei noltáugica...