domingo, 27 de outubro de 2013

C'est possible!

Adoro a sensação de acabar de ver um bom filme e perceber que não serei mais a mesma pessoa após subirem os créditos. Acabo de me sentir assim ao ver Les Intochables (2011) - Os Intocáveis. E o negócio foi sério, pois até me trouxe de volta aqui no blog, que estava todo empoeirado e com teias de aranha.

Bom, é um drama que não é dramático... digo, tem sua carga de tragédia e de dor, mas tudo é passado de forma tão leve e tão simples, que nos faz perceber que a vida pode ser bem melhor se encarada, com leveza e simplicidade. E o mais importante, com bom humor: a receita que nos leva à amizade, fraternidade, justiça e solidariedade.

É bem verdade que já é até lugar comum essa história de que devemos pensar sempre de forma positiva e "rir das desgraças da vida", mas o fato é que nunca conseguimos por isso em prática. Algo como o caos no trânsito de nossa cidade já nos tira totalmente do eixo e nos faz xingar Deus e o mundo. Embora, lá no fundo, saibamos que aquilo é momentâneo e que poderia ser muito pior. Por exemplo, podemos aproveitar pra pensar na vida, refletir, relaxar ouvindo música, olhar a rua por outro ângulo que não vemos quando estamos dirigindo, etc.

O filme fala disso, de aprender a valorizar os pequenos prazeres e de aceitar as situações que a vida nos impõe com positividade, sempre. E mostra isso de forma tão natural, que você se põe no lugar do personagem tetraplégico que não faz nada sozinho, mas ri de sua própria condição ao encontrar a amizade em um oposto a ele em termos de cultura, condição social e de saúde, porque ele se permite a isso. Os dois tornam-se os melhores amigos e nenhuma desgraça é o suficiente para lhes tirar o sorriso do rosto e o bom humor, a não ser quando se separam. É um carpe diem que ultrapassa o significado arquetípico da vida louca e sem limites e refere-se a uma maneira de viver encontrando prazeres em pequenas coisas da vida comum.

Essa semana, por exemplo, me senti estranha ao ler uma reportagem sobre a história de vida de Malala, a menina paquistanesa que levou três tiros de um grupo extremista por insistir em ir a escola, mesmo sob proibição e ameaça de morte, e defender o direito a educação de outras meninas como ela. Pensei, "nossa, tão jovem e essa menina já fez um ato tão grandioso para mudar o mundo, enquanto eu levo uma vida tão rotineira...".

O filme me fez perceber que não são somente atos grandiosos que mudam as coisas, gestos simples e fraternos também podem mudar muitos destinos, basta acreditar nisso e pôr em prática.



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Raízes

Maria nasceu menina forte, lá no interior do interior, dobrando à esquerda e seguindo estrada de terra até um cercadinho em uma clareira de uns poucos metros em que se via uma casinha de sapê, com uma janelinha e uma porta.

A mulata sua mãe puxava água no poço quando veio a dor. Maria veio logo nas mãos da vizinha parteira, chamada às pressas pelo pai, que saiu em disparada no potro que conseguiu em negócio feito com homem da cidade. A menina não derramou lágrima ao vir ao mundo.

Aquele momento era de alegria e celebração de um milagre. Maria demorou para vingar. O interior era longe e não dava para a mulata ficar indo à cidade fazer pré-natal. Se fosse, era de potro, e o saculejo prejudicava o feto. Depois de perder umas cinco barrigas, chegou a vez da de Maria. Já cansada e sem esperanças de que essa, enfim, fincasse raízes em seu ser, a mulata entregou a gravidez nas mãos de Deus. E foi tudo muito natural...

A mulata seguiu normalmente sua rotina. Pegava na enxada, puxava a água do poço, fazia os serviços da casa... E Maria ia ali se alimentando daquele dia a dia. O único acompanhamento que tinha era por parte da parteira que aparecia para visitar a mulata prenha uma vez por mês, apanhada na cidade na garupa do potro do pai da criança até o dia do seu nascimento.

Numa dessas idas à cidade, quando Maria já ia com seus três meses de vida, o caboclo foi e não voltou. Foi a parteira, dessa vez à pé, que levou a notícia para a mulata, um mês depois. Ouviu boato da partida do moço pelo mundo a fora com um grupo de caixeiros viajantes que passaram pela vila e despertaram no caboclo o desejo de saber o que tinha para além das árvores que rodeavam aquele lugar esquecido por Deus.

A mulata conhecia esse desejo de seu caboclo. Inclusive, o moço falou isso para ela no dia em que concebeu Maria. Foi debaixo do bacurizeiro, no tempo em que estava florido, coisa que se vê só uma vez a cada nove meses. A mulata sempre teve feitiço por aquela árvore plantada ali por seus pais antes que ela nascesse.

No dia em que recebeu a notícia da partida do caboclo, a árvore já dava fruto. Foi até ela e colheu um belo e maduro bacuri. A mulata comeu da polpa e separou a semente. Foi até o bacurizeiro com a cria no colo e, ali debaixo, deu à menina de mamar. Em seguida, plantou a semente e desejou que, como aquela árvore, que lhe deu sorte na concepção de Maria, a menina, ali, fincasse raízes para não lhe abandonar em sua velhice.

Maria, então, cresceu junto com o bacurizeiro. Com um ano de idade, já era ensinada pela mãe a regar, cuidar e ter amor pela plantinha. E, assim, a árvore testemunhou todas as fases da vida de Maria: do ventre de sua mãe à primeira infância, da adolescência à mocidade, até aquele dia em que, já mulher feita, conversava com a mulata embaixo das duas árvores.


A mulata sempre repetia para Maria a história da origem daqueles frutos, nascidos pela força das mãos que cuidavam da terra que lhes dava sustento. E, da mesma forma que sua mãe, Maria criou fascínio pelo seu bacurizeiro, sabendo que o primeiro havia sido plantado por seus avós em homenagem a sua mãe, e, o segundo, plantado por sua mãe em sua homenagem. Nunca quis saber do pai, portanto. Maria considerava ter nascido como fruto daquela árvore da qual sua mãe cuidou a vida inteira.

Até que um dia, o galo cantou e a mulata não se levantou no horário de costume. Maria foi procurar por ela e não a encontrou na cama. Como que por extinto, foi até os bacurizeiros e lá estava a mulata, morta ao pé das árvores. Maria entendeu o que sua mãe queria. Ela mesma, sozinha, cavou ali a sepultura e preparou o túmulo.

A vida seguiu para Maria, que cuidava da casa, da terra e, em tempos de seca, puxava água do poço para dar de beber aos bacurizeiros. Nunca se interessou por conhecer homem ou a cidade. Levou sua vida ali mesmo, naquela casinha de uma porta e uma janela. Gostava da vida naquele lugar, do som das árvores crescendo em seu redor.

Quando de nove meses da morte de sua mãe, o bacurizeiro grande floriu. Maria, então, percebeu que a segunda árvore, em altura, encontrou seu tronco com o tronco da primeira, formando uma única copa com duas raízes. A partir daí, ambos os bacurizeiros passaram a florir e dar frutos na mesma época. Maria entendeu que, com isso, sua mãe lhe dizia que permanecia ali com ela, fazendo-lhe companhia para a vida que seria longa e cheia de mistérios.

Maria era quase uma ermitã, conhecida no vilarejo por seu amor à natureza e aos animais. Vivia reclusa em seu terreno e se alimentava apenas de ervas e frutos, aquilo que podia plantar e ela mesma colher. Apesar de magra e pequena, era forte em sua estrutura e seu emocional. Jamais era vista triste ou doente.

Passou a receber visitas de crianças e viajantes para ver as árvores gêmeas que mantinha em sua propriedade. Isso a perturbou um pouco em seu sossego, mas não lhe tirou o sorriso do rosto. As pessoas saiam de lá contagiados pela paz que a senhora de cor mulata e pele já bastante enrugada transmitia. Maria viveu até seus 120 anos, lúcida e forte.

Em um tempo que os bacurizeiros floriam, não foi encontrada em casa pelo grupo de visitantes que ia até sua casa toda semana para ver as árvores. Foram até os bacurizeiros e também não a encontraram, somente o túmulo de sua mãe e um montinho de terra revolvida em que parecia ter sido plantada uma semente.

Aquela semente, porém, não vingou, pois Maria não havia deixado descendentes. O que se ouve contar é que, uma vez a cada nove meses, quando os bacurizeiros dão flores e, em seguida, frutos, pode-se ver de relance um formato em um dos caules das árvores irmãs que lembra o rosto daquela velha senhora que, ali naquelas terras, fincou suas raízes.